Desarmamento, por João Ubaldo Ribeiro

14/10/2005 at 5:39 am 2 comentários

Como é, já resolveu seu voto no plebiscito?— Já, já. Demorou, cara, foi uma discussão braba lá em casa. Muita opinião divergente, sobre se o SIM queria dizer que a gente não queria a proibição ou o contrário, você não imagina a discussão. Acabamos chegando à conclusão de que é o NÃO mesmo. Todo mundo lá vai de NÃO.

— Como é que é? Vocês tão achando que o NÃO vai proibir a venda de armas e munição?

— Não, não. Nós achamos que o NÃO quer dizer que a gente é contra a proibição. E é. Pode votar NÃO também tranqüilo, que é o voto certo.

— Qual é essa de voto certo, cara? Eu sou a favor da proibição, precisamos desarmar as pessoas.

— É, precisamos, precisamos. Vamos começar pelos assaltantes e traficantes, OK? Tu telefona pra polícia e diz pra eles “olha aqui, tive uma idéia-mãe, cês sobem lá nos morros e pegam as armas todas, não fica bandido nenhum armado!” Aí eles batem na testa e dizem “por que é que a gente não teve essa idéia antes, mas é claro, é só ir lá e pegar as armas, obrigadíssimo pela sugestão, ninguém aqui tinha pensado nisso!”

— Pode fazer ironia, mas o desarmamento é um grande passo adiante.

— É verdade. Um grande passo para os esquemas que já estão aí montados, para contrabandear e vender armas e daqui a pouco tu vai poder comprar tua Uzi num camelô da Rua Uruguaiana, onde tu já compra CD pirata.

— Não se pode pensar assim, dessa maneira negativa. O desarmamento é a primeira medida importante e, se você disser que a gente tem que dar prosseguimento, exigindo contrapartida das autoridades, aí eu concordo.

— Eu tou ficando surdo. Tu disse o quê? Que nós vamos exigir das autoridades? Tu já viu algum brasileiro exigir nada de autoridade nenhuma? Brasileiro toma é esporro de autoridade, foi criado nisso e é por isso que faz qualquer negócio para ser autoridade também, nem que seja flanelinha.

— Se a sociedade civil se organizar, o desarmamento põe o Brasil muito adiante. Nossa legislação passará a ser…

— Nossa legislação! Nossa legislação! Eu não agüento mais essa conversa de que nossa legislação é a melhor do mundo, não sei o quê. Pra mim é a mesma coisa que o Jô Soares fazendo a foto do “depois” de uma clínica de emagrecimento.

— Discordo frontalmente. Vamos fazer a nossa parte e exigir do governo que faça a dele.

— Que faça qual dele? Faça como nos hospitais? Nas estradas? Nas universidades? Nas instituições para menores?

— É porque ninguém jamais exigiu realmente, hoje o cidadão é mais cioso de seus direitos.

— Eu sei. É esse governo, esse governo é uma beleza. Não pense que eu não noto os importantíssimos alcances sociais dessa proibição. Por exemplo, grande parte dos excluídos será reduzida.

— Isso mesmo, a longo prazo é isso mesmo.

— Não, eu falo a curto prazo, a curtíssimo prazo. Tu já imaginou o alívio que isso vai ser para o pequeno e o microassaltante? Porque eu já senti que a tua é como a do governo ajudando o pequeno empresário, tu quer ajudar o pequeno assaltante, tu realmente é um grande humanista. Eles devem arrumar um nome aí, “Assalto Participativo” ou “Programa Primeira Bolacha na Cara do Otário”, uma coisas dessas. Tu tá certo, vai ajudar a diminuir a exclusão.

— Tu tá ironizando novamente.

— Só posso estar, cara! Assim que tiver certeza de que nenhum cidadão tem arma em casa, o assaltante que não tem condições de investir em sua primeira arma, que vai estar caríssima, só precisa pegar uns dois comparsas fortes, preferivelmente treinados em artes marciais, e entrar na casa de qualquer pessoa. Quem resistir eles cobrem de porrada. Não vou negar que é uma forma de inclusão, não deixa esses assaltantes sem chance de trabalho. O dono da casa, velho ou fraco e sem dispor do Grande Equalizador…

— O Grande Equalizador?

— Eu me esqueço de que tu não tem cultura literária. O Grande Equalizador era o nome que um escritor americano de que eu gosto muito dava ao revólver. E tem coisa mais certa? Você se esqueceu de que a arma também é a defesa do mais fraco? Com ela na mão, fica mais difícil ser assaltado na base do cachação.

— Cara, tô surpreendido com você, surpreendidíssimo mesmo. Até agora não consigo acreditar que você tenha mudado tão radicalmente, você até ontem pensava o oposto.

— É, mas pensei mais um pouco e descobri que o Brasil é um país muito mais original do que a gente pensa. Você veja agora: meus princípios não mudaram, mas eu vou votar contra os meus princípios para preservar meus princípios. Já basta um tráfico mandando no Rio, que é o das drogas. Com o das armas, já fica demais, a gente nem vai saber a quem obedecer. Nem a polícia vai saber mais a quem obedecer, será o caos. Vá por mim, cara, vote certo, vote na realidade. Vou consultar um ex-padre que eu conheço sobre como é que se diz isso em latim, uma coisa mais ou menos assim: “Investigatio, habemus pizzam. Prohibitio, habemus mutretam.” Claro que está errado, mas ele corrige e por enquanto eu te cedo um slogan: “Para votar SIM, vote NÃO.” Ah, Deus meu, ái lóvi Brêizil.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.

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Deus segundo Laerte Ciclos

2 Comentários Add your own

  • 1. Carols  |  16/10/2005 às 1:27 am

    vou nem mentir que não entendi! 😐
    tu mudou de opinião?
    auhaahuhahuahu :O :O :O
    😐 😐 😐

    ¬¬ emotion-boy.

    Responder
  • 2. Lay  |  16/10/2005 às 6:58 pm

    Compreendo todos os argumentos… Mas chega a ser algumas vezes hilario, observar as propagandas do SIM e do NÃO, num Brasil, lutando por levantar as bandeiras da democracia (?)…Não vou discutir argumento por argumento, pois iríamos aos mais profundos abismos da retórica virtual sintética e desnecessária!
    Qual a opinião das classes dominantes??? Logicamente sua opinião é NÃO ao Estatuto, uma vez que visam continuar “tentando” manter-se seguros em suas vidas simplórias e cheias de materialismos dos quais não querem ser desprendidos.
    Paremos agora para refletir sobre a opinião predominante nas massas. Vejo que os instrumentos da mídia, como é de praxe, continuam favorecendo as minorias, alertando para o NÃO e fingindo que existe uma “democracia” de verdade no nosso país. Naturalmente a grande massa será influenciada pela mídia e pelos administradores do poder, os quais os conduzirão em termos de opinião pública.
    Mas não nos deixemos enganar amigos!!! Os que defendem SIM são os poucos indefesos que morrem de medo dos índices do “crime” suscitados pela televisão!!! Ou aqueles que compreendem melhor o SISTEMA e atingem certo grau de poder, sabendo que as armas continuarão em poder do Estado e de seus representantes. Conclui depois de pensar e pensar que não, nao acredito me nenhuma das opiniões, apesar de respeitá-las. A imposição vertical (dizem que é democracia, mas mentem tão bem quanto os vendedores de um produto) de mais uma lei não é JUSTA!!!!! ONDE ESTÁ A LIBERDADE?????? ONDE ESTÁ A VERDADEIRA RESPOSTA AO PROBLEMA DA “CRIMINALIDADE”? PARECE QUE SÃO MAIS RAZOÁVEIS OS ARGUMENTOS A SEGUIR:

    VAMOS ABOLIR AS PENAS… VAMOS AUXILIAR O HOMEM A COMPREENDER O OUTRO NAS PROXIMIDADES VERDADEIRAS ONDE O CONFLITO FOI ESTABELECIDO!!!
    Nao é preciso como eu, ser estudante de Direito para saber que nossas leis, sobretudo penais, são ridículas ao ponto de serem contadas como piadas em bares, devido a sua não-eficácia!! Não é mais uma lei que irá determinar o fim da violência urbana, muito menos o fim das “situações-problema” geradas pelo porte de arma. Se queremos abolir as penas, seria contraditório aceitarmos mais uma gama de leis criminalizando determinadas condutas! Acredito que a solução é ESCLARECIMENTO… EDUCAÇÃO E CONSCIÊNCIA… acredito que o verdadeiro combate fazemos no dia-a-dia, em nossas relações inter-pessoais, contagiando nossos próximos como os mais belos sentimentos. Ahhh…. acham que isso é muito bonitinho e tal… mas que não passa de uma UTOPIA????? AFIRMO QUE ESTÃO ENGANADOS! Temos inteligência suficiente para viver em grupo, para criar novas formas de sociabilidade, experimentando liberdades. Querendo, podemos qualquer coisa. Qualquer percurso tem um fim utópico… como diria Eduardo Galeano, a Utopia é o caminho para o qual caminhamos… Entretanto, ao decorrer do caminho, podemos fazer heterotopias (lugares diferentes) para a construção de novos percursos para a humanidade. É isso.. Como protesto ou nao, meu voto será NULO.

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